por Isaac Meira
Nas publicações que tratam sobre culto e adoração, é comum o uso de episódios bíblicos do Antigo Testamento como normativos para o culto cristão. O problema fundamental aqui é saber como identificar nesses episódios os elementos prescritivos e os meramente descritivos. Em algumas publicações há a sugestão, implícita ou explícita, de que esses episódios contêm exemplos e orientações que devem ser seguidos à risca.[1]
Com frequência, é destacado o fato de que determinadas atividades ou instrumentos musicais aparecem na Bíblia em cenas de adoração “fora do templo”. Assim, por associação, os cristãos não deveriam usar tais coisas “dentro da igreja” hoje, pois a igreja é o templo cristão. Há uma importante questão hermenêutica envolvida aqui: a analogia do templo judaico com os locais de culto cristão da atualidade.
A comparação pode ser resumida nas palavras de Bacchiocchi: “A música na igreja deveria diferir da música secular, porque a igreja, como o antigo Templo, é a Casa de Deus na qual nos reunimos para adorar ao Senhor e não para sermos entretidos.”[2]
Mas, será que o lugar onde ocorre o culto cristão é comparável ao templo judaico? Se sim, em que sentido?
Os cristãos e o templo de Jerusalém
O templo era, principalmente, lugar de sacrifícios e orações. As “reuniões” no templo eram diárias, mas por questões geográficas, era exigido do adorador o comparecimento em apenas três eventos por ano em Jerusalém (Dt 16:16).[3]
Quando estava em Jerusalém, Jesus frequentemente ia ao templo (Jo 2:13-17; 5:14; 7:14; 8:2; 10:23; 18:20). Após a ascensão de Cristo, os primeiros cristãos continuaram indo ao templo tanto para pregar (At 3:11-26; 5:20-25, 42) quanto para participar do cerimonial (At 15:1-5; 21:20; Gl 2:3-5; 5:1-5).
Os primeiros cristãos provavelmente não tinham uma compreensão clara dos significados da morte de Jesus e suas implicações sobre o culto. Alguns deles ainda ofereciam sacrifícios e celebravam festas judaicas (At 3:1; 20:16; 21:17-26; Hb 5:11-14).
Porém, mesmo permanecendo ligados à Jerusalém e ao templo (At 2:46; 3:1; 5:12, 20-21, 25, 42), os primeiros cristãos não tentaram transferir o cerimonial litúrgico do templo às reuniões cristãs (que aconteciam nas casas e também nas sinagogas). As primeiras décadas do cristianismo foram um período de transição e crescimento na compreensão da vida e morte de Jesus, e isso era refletido no culto cristão.
Os cristãos e as sinagogas
Após a destruição do templo (em 70 d. C.), e com uma melhor compreensão do significado do Evento Cristo, os cristãos continuaram se reunindo nas casas e nas sinagogas. As reuniões exclusivamente cristãs eram feitas nas casas, e o principal evento era a Santa Ceia.
Com o tempo, os cristãos deixaram de se reunir nas sinagogas com os judeus e passaram a fazer reuniões apenas nas “igrejas do lar”, nas casas. Para alguns autores, o modelo paradigmático dessas reuniões cristãs foram as sinagogas, e não o templo.
Os primeiros cristãos não se viam como uma nova religião fora do judaísmo. Eram considerados como uma das seitas do judaísmo, frequentavam as sinagogas, e, como o judaísmo era a única religião lícita no Império Romano da época (além da própria religião imperial), “se não fosse por sua identificação com o judaísmo (cf. At 18:12-16), o cristianismo teria pouca ou nenhuma chance de sobreviver no mundo grego-romano.”[4]
Alguns autores sugerem que as reuniões cristãs nas sinagogas teriam sido apenas circunstanciais, à medida em que os primeiros cristãos ainda se consideravam parte do judaísmo. Além disso, mesmo em suas reuniões nos lares, os primeiros cristãos teriam desenvolvido uma liturgia própria, seguindo o estilo de culto das sinagogas.[5]
Outros autores duvidam que a sinagoga tenha sido modelo para o culto cristão do primeiro século.[6] Afirmam que o culto cristão era uma novidade cultural,[7] apenas incluindo alguns elementos da sinagoga, e não uma cópia de seu formato. De fato, posteriormente o formato do culto cristão passou a absorver mais elementos das reuniões das sinagogas, mas a ideia de que elas foram o grande paradigma para o culto cristão teria surgido tardiamente, por volta do século XVII.[8]
Além disso, não há uma evidência bíblica forte de que as sinagogas, e sua liturgia, tenham surgido por ordem divina. Nem há qualquer recomendação bíblica para que os cristãos continuassem com o formato de culto das sinagogas, e nem mesmo há sequer uma justificativa bíblica para a existência das sinagogas.[9]
De qualquer forma, mesmo se o uso da sinagoga como modelo para o culto cristão primitivo tivesse sido divinamente orientado, esse fato por si só não deveria significar que os cristãos atuais estivessem obrigados a seguir rigidamente a liturgia e o estilo de culto das sinagogas do primeiro século.
Provavelmente, esse foi um fenômeno cultural e sociologicamente condicionado.
Provavelmente, esse foi um fenômeno cultural e sociologicamente condicionado.
Os primeiros templos cristãos surgiram com a institucionalização do cristianismo no Império Romano na Era Constantino, no século IV.[10] Até então, o cristianismo era uma religião sem templos construídos para o seu culto. O NT sugere que eles se reuniam em sinagogas e casas, e deixa claro que os próprios cristãos são “a igreja”, e não a arquitetura de um prédio (1 Co 3:16; Gl 6:10; Ef 2:20-22; Hb 3:5; 1 Tm 3:15; 1 Pe 2:5; 4:17).[11]
Por que o ritual templo não deve ser comparado ao culto cristão
Após essa breve contextualização, alguns dados devem ser considerados quando o templo é usado como modelo para o culto cristão e sua música. Aqui estão alguns deles:
1) No Novo Testamento, o templo não era o lugar de louvor musical da igreja cristã. Apesar de ainda irem ao templo, os primeiros cristãos se reuniam, principalmente, nas sinagogas e nas casas, e a música das sinagogas era diferente da música do templo. De acordo com Frank Senn:
“os cristãos dos primeiros séculos evitaram a publicidade dos cultos pagãos. Eles não tinham quaisquer santuários, templos, estátuas, ou sacrifícios. Eles não organizavam nenhum festival público, danças, performances musicais, nem peregrinações. O ritual central deles envolvia uma refeição de caráter doméstico e uma composição herdada do judaísmo.”[12]
2) O templo perdeu a importância como lugar de culto, como indica a resposta que Jesus deu à mulher samaritana: “Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai” (Jo 4:21). De fato, há no evangelho de João uma consistente indicação de substituição do templo pelo próprio Cristo. Jesus é o novo templo.[13]
3) Não havia pregações, nem apelos evangelísticos dentro do templo. A liturgia do templo não privilegiava algo como a pregação, e nosso culto hoje é centralizado na pregação. [14] Além disso, mesmo em reuniões fora do templo, as pregações ocorriam num estilo bem diferente do que é praticado hoje nas igrejas cristãs, especialmente as evangélicas.[15] O que chamamos hoje de “sermão” não é exatamente o que acontecia no AT e na sinagoga. Tanto na sinagoga quanto nas reuniões dos primeiros cristãos, longe de ser apenas um discurso diante de um auditório passivo, eram comuns a participação ativa e interrupções por parte da audiência.[16]
4) Não havia ensino da Escritura dentro do templo, como temos hoje nas escolas bíblicas (escola sabatina, escola dominical). As sinagogas eram usadas para o ensino da Bíblia. Algumas dependências externas do templo também foram usadas para tal fim, mas nunca o interior do templo.
5) O ritual do templo prescrito por Deus foi liderado e conduzido apenas por homens, hebreus da tribo de Levi, jamais por mulheres.[17] Arão e seus filhos representavam primariamente o sacerdócio de Jesus e não o ministério pastoral evangélico. A tendência de elevar o pastor a uma classe clerical enquanto o crente considerado leigo apenas vê o “sacerdócio” do lado de fora não encontra respaldo na Bíblia. O pastor evangélico não é um sacerdote como a palavra era entendida no AT, mas um sacerdote como qualquer outro cristão e um servo seguindo uma vocação, de acordo com seu dom. O sacerdócio é privilégio e dever de todo cristão (1 Pe 2:5, 9; Ap 1:6). Ao buscar no templo um modelo para o culto cristão, forma-se uma liturgia que nega o sacerdócio de todos os crentes.
6) O uso de instrumentos musicais no templo também foi reservado para homens hebreus da tribo de Levi. Ao contrário, na igreja cristã, o “sacerdócio de todos os crentes” lançou a responsabilidade de conduzir a adoração nas mãos de gentios, mulheres e leigos.
7) Não havia grupos e corais infantis dentro do templo. Se a associação for seguida estritamente, crianças não poderiam cantar nas igrejas hoje.
8) Não havia celebrações sociais como cultos de aniversário, casamento e bodas dentro do templo.
9) A adoração no templo era clerical, terceirizada na maior parte do tempo. A congregação não participava todo tempo dos cânticos, pois esse era um privilégio quase exclusivo dos músicos profissionais.
10) Apenas homens sacerdotes tocavam trombetas no ritual do templo.
11) Não havia música vocal com harmonias a 4 vozes no templo (2 Cr 5:13 diz que eles cantavam em uma só voz, o que pode significar tanto que “cantavam junto” quanto em “uníssono”, como traduziu a NVI).
12) Durante o serviço do Templo, instrumentos musicais eram apenas tocados durante os sacrifícios. O uso levítico de instrumentos musicais era um aspecto do culto cerimonial.[18] Por isso, nas sinagogas (“fora do templo”) os judeus não usavam os instrumentos prescritos, pois os consideravam parte do ritual do templo.
13) A igreja dos apóstolos usou mais o modelo de culto da sinagoga que o do templo. Não era no templo que os cristãos se reuniam todos os sábados, mas nas sinagogas (At 15:21; 22:19; 24:12; 26:11; Tg 2:2; Hb 10:25). Como já foi dito, a frequência mínima ao templo requerida ao adorador era de três vezes ao ano, uma frequência que nenhuma igreja cristã hoje gostaria de imitar.
14) Não havia visitantes, estrangeiros, no templo. A regra era: “o estranho que se aproximar morrerá” (Nm 3:10 ). Um culto tão restrito não tem paralelos literais com o culto cristão. Levar um visitante para o templo era profanar o lugar (At 21:28-29). No entanto, Trófimo seria bem-vindo num culto cristão. Todos nós somos propriedade exclusiva de Deus (1Pe 2: 5, 9).
Conclusão
Outros pontos poderiam ser destacados, mas o que foi apresentado já é suficiente para perceber-se o templo não pode ser usado como paradigma do culto. Não há dúvida de que o Antigo Testamento contém elementos prescritivos para a adoração cristã. A dúvida está em como identificar as prescrições válidas para o culto cristão, pois a razão da existência de boa parte da liturgia do templo não existe mais. Assim, os cristãos deveriam enfatizar os princípios de adoração do Antigo Testamento, pois esses extrapolam os limites de tempo, cultura e lugar. [19]
Não é necessário tentar encaixar cada detalhe do que é praticado no culto cristão hoje nos detalhes ritualísticos do templo. Nos cultos cristãos de hoje são praticadas muitas coisas que não estão previstas e nem sequer citadas na Bíblia, e nem por isso são consideradas erradas.
Ao buscar estreitos paralelos entre o culto no templo e o culto cristão, o intérprete da Bíblia corre o risco de desconsiderar os claros significados tipológicos do ritual do santuário. Os rituais e a liturgia do templo eram sombras passageiras, que apontavam para realidades que se cumpririam em Jesus.
Essa argumentação revela um problema hermenêutico mais amplo: o uso da Bíblia de maneira equivocada para justificar práticas eclesiásticas. Longe de ser uma busca pelo “embasamento bíblico” para o que é feito hoje, isso é uma tentativa de levar a tradição atual para dentro da Bíblia e procurar respaldo.[20] No entanto, esse respaldo, como foi visto, nem sempre é obtido através de uma interpretação adequada do texto bíblico.
Por isso, é preciso muito cuidado ao tentar identificar no templo elementos prescritivos para o culto cristão. O mais seguro é identificar princípios que sejam aplicáveis em qualquer tempo e lugar.
[1] Como, por exemplo, Ozeas C. Moura, “Instrumentos de percussão na música sacra”, em Revista Adventista, Dezembro de 2009, pp. 14-16; Samuele Bacchiocchi, Música, teologia do louvor e adoração a Deus (RJ: Material editado pela União Este Brasileira da Igreja Adventista do Sétimo Dia, 2001.), p. 22; Vanderlei Dorneles, Cristãos em busca do êxtase (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2008),p. 193-194.
[2] Samuele Bacchiocchi, O cristão e a música rock (Berrien Springs, MI: Biblical Perspectives, 2000), p. 209.
[3] Ellen G. White, O desejado de todas as nações (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1990), p. 313.
[4] Wilson Paroschi, “Os pequenos grupos e a hermenêutica: evidências bíblicas e históricas em perspectiva”, em Teologia e metodologia da missão: palestras teológicas apresentadas no VIII simpósio bíblico-teológico sul-americano, ed. Elias Brasil de Souza (Cachoeira, BA: CePLiB, 2011), 353.]
[5] Lilianne Doukhan, In tune with God (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2010), p. 288.
[6] Como, por exemplo, Robert Banks, Paul’s Idea of Community (Peabody: Hendrickson, 1994), pp. 106-108, 112-117; e David C. Norrington, To Preach or Not to Preach? (Carlisle: Paternoster, 1996), p. 48.
[7] Frank Viola e George Barna, Pagan Christianity?: exploring the roots of our church practices (Carol Stream, Illinois: Tyndale House Publishers, 2008), p. 15.
[8] Paul F. Bradshaw, The Search for the Origins of Christian Worship (New York: Oxford University Press, 1992), pp. 13-15, 27-29, 159-160, 186.
[9] Alfred Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah (Mclean: Macdonald Publishing Company), p. 431.
[10] Graydon F. Snyder, Ante Pacem: Archaeological Evidence of Church Life Before Constantine (Mercer University Press/Seedsowers, 1985), p. 67.
[11] O uso da palavra ekklesia (igreja) para referir-se a um lugar de reunião cristã ocorre no ano 190 d.C. por Clemente de Alexandria (150-215 d. C.).Clement of Alexandria, The Instructor, Book III (Whitefish, MT: Kessinger Publishing, 2010), pp 27-41. Mesmo assim, esse lugar não era um templo cristão, mas um lugar privado que os crentes do século II usavam para suas reuniões.
[12] Frank Senn, Christian Liturgy: Catholic and Evangelical (Minneapolis: Fortress Press, 1997), p.53.
[13] Sobre a substituição do templo, ver Silas Tostes, “Jesus e o novo templo”, em Mission News: revista de missiologia online, Vol. 1, Ano 1 (Instituto Antropos, Abril de 2009), pp. 33-46. Disponível em http://missionews.com.br/v2/index.php?option=com_content&view=article&id=18:artigo-jesus-e-o-novo-templo&catid=2:numero-atual&Itemid=2
[14] O tempo reservado para a pregação e a sua posição como ponto culminante da ordem litúrgica demonstram essa centralidade. De acordo com o Manual da Igreja, “as duas partes principais do culto de adoração são: a) A resposta congregacional em louvor e adoração, expressos em hinos, oração e ofertas. b) A mensagem da Palavra de Deus.” Sendo que a pregação é “uma das mais importantes partes da hora do culto”. Manual da Igreja, p. 181 e 182.
[15] A “homilética” evangélica atual difere do que encontramos no NT. A própria palavra grega homilew inclui o significado de “conversa” (como em Lc 24:14-15, At 24:26), um diálogo e não o monólogo.
[16] David C. Norrington, To Preach or Not to Preach? The Church’s Urgent Question (Carlisle: Paternoster Press, 1996), p. 3-4. A diferença básica entre as pregações do AT e da sinagoga é que os profetas do AT pregavam de maneira não regular, espontaneamente, sem um lugar fixo e conforme surgiam as oportunidades; e na sinagoga a pregação era uma ocorrência regular.
[17] Mulheres podiam ministrar “`a porta” do tabernáculo (Ex 38:8).
[18] Curiosamente, mesmo autores que fazem uma associação entre o ritual do templo e o culto cristão reconhecem que a música do templo tinha um caráter cerimonial. Bacchiocchi, por exemplo, em O cristão e a música rock, afirma que o ministério musical dos levitas era “parte da apresentação da oferta diária no templo” (p. 126), e que a música do templo “era um acessório ao ritual do sacrifício” (p. 129). Obviamente, tais características ritualísticas não se aplicam ao culto cristão e sua música.
[19] Textos do AT que prescrevem atitudes como reverência, santidade, temor, pureza do adorador, são aplicáveis ao culto cristão em qualquer tempo e lugar.
[20] Essa abordagem à Bíblia é conhecida como “texto-prova”, na qual o intérprete faz uma afirmação e então busca textos bíblicos que concordem com ela, ignorando contextos e omitindo textos que sejam contrários. A conclusão existe a priori, e a pesquisa bíblica, feita a posteriori, é apenas confirmatória.
Sem comentários:
Enviar um comentário